sábado, 30 de janeiro de 2016

Legitimidade

Utilizar qualquer linguagem para questionar o mundo só pode ser bom. A não ser que não seja o mundo que queremos questionado, que as questões não sejam as que queríamos colocadas, que sejam colocadas por indivíduos que não achamos apropriados. Ou que não gostemos das respostas. Nesse caso até se podem discutir livros sem os ler.

Vem isto a propósito de duas bandas desenhadas autobiográficas muito interessantes, “Pyongyang” (Devir) e “O árabe do futuro” (Teorema), que retratam, respectivamente, a Coreia do Norte vista por um ocidental (o canadiano Guy Delisle), e a Líbia e a Síria vistos através das memórias de infância do filho de uma francesa e de um sírio (Riad Sattouf). Nenhum dos retratos é lisonjeiro. Embora denotem pesquisa e enquadramento adicional, um reduz um povo a robôs manipulados por uma elite megalómana; o outro mostra os países árabes em causa enquanto antros de desorganização e repressão.






Com o curto tempo disponível Delisle apenas procurou confirmar o que já “sabia” sobre a Coreia do Norte, e não o esconde. Não quer dizer que “Pyongyang” não seja parte de uma realidade, mas falta a componente humana, a que não teve livre acesso, dada a coreografia controlada da própria visita. Nesse caso, para alguns, nem deveria ter feito o livro; tendo-o feito, não se trata de um objecto digno de análise. Com Riad Sattouf há outra questão: não contextualiza as suas experiências (claramente traumáticas) ou a sua herança árabe, o ponto de vista acompanha a vida adulta ocidental do autor, que parece tão externo à Síria dos anos 1970-80 como Delisle à Coreia do Norte. Alguns leitores podem ir mais longe, no sentido em que um “renegado” trunfa um “ignorante”. E há outra crítica a Sattouf: a de a sua visão ser a de uma criança marcada por relações familiares, com destaque para o pai, que oscila entre a escola ocidental e as raízes sírias, gerindo contradições que parecem insanáveis (como a admiração por ditadores), e que (é uma mensagem subliminar do livro) questionam mesmo se um diálogo Ocidente-Oriente é viável.


Compare-se pois “O árabe do futuro” a outras relatos. Abordando, quer o regime do Xá, quer o dos Aiatolas, “Persépolis” de Marjane Satrapi é também enviesado e moldado por experiências familiares, mas é mais complexo em termos de enquadramento. Os muito pesquisados livros de Joe Sacco sobre a Palestina mostram gente digna, que sofre horrores sob ocupação israelita. Mas se no mundo de Sattouf parece evidente que pessoas dignas devem existir, no mundo de Sacco é igualmente lógico que existam corruptos e incompetentes que não são relevantes naquele contexto (Satrapi descreve de tudo). Tudo faz parte, com tudo temos de lidar. Uma Palestina livre seria mais ou menos democrática e boa para viver do que Israel? Deve ter o direito de existir, o resto seria com os palestinianos.

A questão é que uma BD que representasse a ideia de Paris (suja, não-igualitária, cruel) descrita por um dos norte-coreanos com quem Delisle dialoga (e que visitou França, também de forma supervisionada) podia ser mais bem recebida por alguns leitores do que “Pyongyang” (nem que fosse pelo exotismo da visão). Como obras mais solidárias sobre o mundo árabe seriam mais celebradas do que “O árabe do futuro”. Ou seja, pode-se achar que os autores não têm as credenciais para falarem do que falam, mesmo que tenham vivido o que viveram. Nos EUA há casos similares, historicamente lógicos mas que, vistos de fora, parecem surreais; como certos objetos culturais apenas poderem ser apropriados por subsegmentos da população. A palavra “nigger “(“the N word” para quem a não pode dizer) por exemplo, a propósito da qual se recomenda o monólogo do (negro) Chris Rock sobre a diferença entre “black men” e “niggers”. Que se poderia livremente traduzir (salvo as devidas distâncias) como a diferença entre “portugueses” e “tugas”, elementos da comunidade a que nos orgulhamos de pertencer versus comportamentos que nela nos envergonham.


O que me leva à questão fundamental, relacionada com a divisão imbecil mas constante do mundo em variáveis categóricas, que evitam dúvidas e facilitam o histrionismo. Ou seja, com o “Paradigma da Gravidez”. Não se está “um pouco grávida”. Não se pode ser do Porto e do Benfica. Nos EUA a identificação oficial é num só grupo étnico, independentemente de eventuais misturas. E ainda acusam a BD de ser simples e maniqueísta... Uma pessoa não pode arriscar ter um comportamento ou uma opinião identificados como sendo racista, sexista, comunista, socialista, idealista, capitalista, fascista, anti ou pró isto ou aquilo, sem ser automaticamente rotulada. E a partir daí transferem-se para o indivíduo todas as caraterísticas associadas. O pior de tudo acaba por ser a expressão “politicamente correto”, não por causa do conceito muito válido por detrás dela, mas porque é apropriado de ambos os lados de uma barricada com igual “eficácia”. Fora momentos em que todos se atropelam para estar de acordo, geralmente num contexto abstrato quanto a causas e soluções (a crise dos refugiados, por exemplo), esse tipo de atitude é muito útil, porque ajuda a definir lados de forma clara. Desse ponto de vista é interessante o modo como os comportamentos extremados se tendem, perversamente, a respeitar. Dialogar na proximidade é mais difícil do que discordar nas margens.

Tal como pontos de vistas e realidades históricas, os livros têm de ser lidos à luz das suas limitações, contextos e objetivos. Em vez de serem descartados ou louvados como base apenas no que supostamente representam, ou no que poderiam/deveriam ser. Nenhum deles nos vai, por si só, transmitir a Verdade.

João Ramalho-Santos


O árabe do futuro (Ser jovem no Médio Oriente, 1978-1984). Argumento e desenhos de Riad Sattouf. Teorema. 160 pp., 19 Euros.

Pyongyang. Argumento e desenhos de Guy Delisle. Devir. 180 pp., 22 Euros.

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