sábado, 16 de abril de 2016

Revisões


Apesar de ser sempre difícil ter opiniões consensuais sobre a sua definição, recuperar obras marcantes da banda desenhada portuguesa tem sido felizmente comum, desde contribuições de Fernando Relvas ao recente “Os doze de Inglaterra”, um trabalho editorial de José Ruy e Guilherme Valente (Gradiva). Publicada originalmente na revista “O Mosquito” entre 1950-51, esta gesta cavaleiresca situada no reinado de D. João I é sobretudo uma manifestação do talento do grande autor Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005), cuja qualidade ultrapassou em muito o meio nacional. Desde já uma nota prévia: “O Mosquito” foi uma leitura adulta, inevitavelmente mais crítica. A latitude reservada para referências de infância, que tendemos a desculpar nas suas limitações, é, no meu caso, para a revista “Tintin” ou as BDs de super-heróis (versão EBAL).



A questão é, passe o pleonasmo, exatamente em que questão se deve focar uma abordagem a este livro. E a resposta é simples: trata-se de sublinhar o excepcional trabalho gráfico de E.T. Coelho numa edição excelente a esse nível, e em relação à qual é preciso citar o que Manuel Caldas fez com “Prince Valiant” de Hal Foster, ou livros de Gustave Doré. Na verdade sente-se falta de um mais profundo enquadramento da obra, não apenas em termos de “O Mosquito”, mas globalmente, de modo a ser mais relevante para outras gerações de leitores. O elegante trabalho de Coelho não é menorizado pela influência clara de Foster, e por ambos terem Doré como figura tutelar. A Arte não ocorre num vácuo, e neste formato o livro tende a pregar apenas aos convertidos. Por outro lado é preciso referir que “Os doze de Inglaterra” (na verdade a demanda solitária do cavaleiro “Magriço”) é sobretudo um notável trabalho de ilustração que procura ser BD, algo com que “Prince Valiant” também se debate. E nada melhor para vincar isso mesmo do que a relação tortuosa com o texto que acompanha a obra.
Na publicação original Raul Correia, diretor de “O Mosquito”, terá adaptado um romance de António de Campos Júnior, e não é por ser “excessivo, mas belo” (como se lê em vários locais) que a total reformulação do texto (por José Ruy?) é lícita, se discutível. Embora isso tivesse sido, desde logo, meritório, não de trata pois apenas de revelar os desenhos completos de Coelho, “mutilados” na publicação original para acomodar o extenso texto. A questão é que o Raul Correia argumentista tinha tendência para se assumir sobretudo como o escritor que também era, parecendo não acreditar na  linguagem da BD enquanto equilíbrio entre o que “diz” o desenho e o que refere o texto, desconfiando do primeiro ao ponto de tornar o segundo repetitivo e redundante. Algo que as inúmeras peripécias do “Magriço” no seu caminho para a glória não necessitam; sendo clássico nas suas abordagens narrativas e planificações, o talento de Coelho dá uma expressividade às personagens e um rigor ao seu movimento que dispensa o que era, no fundo, uma muleta. Embora esta opção de recuperar o desenho, que não o conteúdo original da obra, devesse ter sido mais assumida, assiste-se aqui a algo semelhante ao que acontece na Ópera, onde a identidade do libretista (e, quase, o libreto em si) é irrelevante perante o compositor e a sua música. Não é bem o que se pretende em banda desenhada enquanto linguagem, mas é uma boa solução neste caso particular.

Seja como for, é excelente ver a Gradiva assumir um rumo criativo na vertente histórica da BD nacional. Apesar de denotarem conceitos completamente distintos, este recuperado “Os doze de Inglaterra” de Eduardo Teixeira Coelho fica muito bem ao pé da recente visão de Aljubarrota em “A Batalha: 14 de Agosto de 1385”, de Pedro Massano.

Os doze de Inglaterra. Ilustrações de Eduardo Teixeira Coelho, trabalho editorial de José Ruy e Guilherme Valente. Gradiva. 112 pp., 18,70 Euros.

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