sexta-feira, 26 de agosto de 2016

VIGILÂNCIA


A dinâmica editorial recente tem obliterado a memória de um tempo onde tudo parecia muito difícil. De tal modo que nem sempre se consegue dar a atenção devida a lançamentos, marcados também por circunstâncias especiais. Por exemplo, “V for Vendetta”, obra escrita pelo notável argumentista inglês Alan Moore e incluída na coleção Novelas Gráficas 2 (Levoir), gerou redobrado interesse pela presença do desenhador David Lloyd, e pelo facto de a máscara de Guy Fawkes usada pelo protagonista ter sido apropriada pelo grupo Anonymous. No entanto, esta boa fábula distópica (publicada entre 1982-85) é relativamente linear, e está a anos-luz da construção minuciosa de “Watchmen”, a obra referencial ao nível de super-heróis escrita por Moore e desenhada por Dave Gibbons, que a Levoir lançou numa excelente edição. Desde logo: é o livro que quem diz detestar super-heróis tem de ler, para pelo menos os detestar com critério. Porque é óbvio que os próprios autores desconfiam de um género cujo interesse no mercado anglófono tem muito a ver com popularidade.


Publicado originalmente como uma mini série de 12 números em 1986-87 é difícil explicar hoje a importância de “Watchmen” a um público habituado aos inúmeros filhos bastardos, que aplicam uma versão aguada das suas “receitas” (porque é um pouco disso que se trata) a heróis muito mais conhecidos. Porque quase tudo de interessante que se lê e vê hoje com estas personagens tem raízes em “Watchmen” e, noutro contexto, “The Dark Knight Returns” de Frank Miller (também de 1986). Por outro lado, é provável que a história não tivesse sido possível se não utilizasse personagens obscuras, que a DC Comics adquiriu à Charlton Comics, e que Moore teve total liberdade para desconstruir/reconstruir, mantendo, apesar disso, “tipos” nos quais se reconhecem outros heróis: o justiceiro solitário perturbado Rorschach (Question, Batman), o soldado/agente secreto Comedian (Nick Fury, Captain America), o herói com poderes cósmicos Dr. Manhattan (Silver Surfer, Superman), os heróis de base tecnológica Nite Owl e Ozymandias (Iron Man, Batman), a super-heroína que navega o sexismo omnipresente Silk Spectre (Wonder Woman, Black Canary).
Para além de homenagens a inúmeros autores e às diferentes épocas de histórias de super-heróis, que pouco dirão a leitores contemporâneos, o fulcro de “Watchmen” é simples: como é que se poderia, realisticamente, equacionar a presença de vigilantes mascarados com superpoderes na sociedade? Como seria o seu quotidiano? Que reações despoletariam na população? Quais seriam os seus objetivos e linhas de ação? Como poderiam ser (ou não) controlados pelo poder político? De que modo se enquadrariam na História e se renovariam, desde o seu aparecimento nas décadas de 1930, aos anos 1980? As respostas a que Moore chega, não só a partir da história em si, mas dos suplementos a cada capítulo que ajudam a contextualizar a ação, assentam numa abordagem feroz, social, económica e política. Para além de pormenores esclarecedores, como a instrumentalização de tais personagens ter alterado acontecimentos, permitindo uma vitória dos EUA no Vietname (e a Nixon evitar Watergate), o elemento perturbador resulta da criação de uma espécie de “realpolitik” de licra, que obviamente nada deve ao heroísmo ou ao patriotismo, e que leva a história para uma ultra distopia, no sentido em que é construída com a melhor das intenções, como quase tudo o que é verdadeiramente péssimo.

A planificação repetitiva (geralmente nove vinhetas iguais em filas de três por página), ligada ao desenho elegante, rígido e nada espetacular de Gibbons acaba por ser o veículo gráfico ideal para o texto e conceitos de Moore, no sentido em que ilumina sem distrair. A banda desenhada é feita de equilíbrios, e em “Watchmen” o grafismo “conservador” esconde o alcance de um livro extraordinário para quem estiver disponível, utilizando o título da biografia do primeiro Nite Owl, a espeitar debaixo da máscara.

Watchmen. Argumento de Alan Moore, desenhos de Dave Gibbons. Levoir. 432 pp., 39,90 Euros.

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