sexta-feira, 14 de outubro de 2016

CÁTEDRA

Catedrático de literatura francesa na Universidade do País Basco, estudioso de banda desenhada e argumentista premiado, Antonio Altarriba é uma das mais interessantes figuras da BD espanhola, destacando-se as obras dedicadas aos seus pais, “A arte de voar” sobre histórias do pai na Guerra Civil Espanhola, editada na primeira coleção de Romances Gráficos Levoir/Público, e “A asa quebrada”, sobre as vicissitudes na vida de sua mãe só conhecidas após a sua morte, que sairá na segunda coleção. Se estes dois livros (ambos com desenhos de Kim, num tom realista “neutro”) surgem como homenagens biográficas sobre as quais se reflete a História de Espanha, “Eu, assassino” (Arte de Autor) é um pouco diferente, embora comungue da mesma matriz-base.
Desde logo conta com um desenho bastante mais duro de Keko, e o uso dramático de vermelho (talvez até excessivo) num preto e branco contrastado que segue uma linha gráfica que vem de Milton Caniff, Alberto Breccia e Frank Miller. Mas sobretudo o protagonista é Professor (de Arte) na Universidade do País Basco, e muito semelhante do ponto de vista físico ao próprio Altarriba. Uma parte importante da história implica pois a realidade política do País Basco, por um lado, e a dinâmica do meio académico em geral, por outro, embora seja suficientemente arguta para que esses elementos surjam mesclados com o relato na primeira pessoa do protagonista.

Citando ao início Sade, e na introdução “O Mandarim” de Eça de Queirós, a reflexão de Altarriba imbrica nos diferentes modos e perspetivas de considerar a morte (individual, coletiva, simbólica, “útil”, libertária, criadora de mitos, terrorista) e as suas consequências, de como podemos acabar por ficar indiferentes perante a sua ubiquidade quotidiana, e quais os mecanismos possíveis para o evitar. Com a particularidade de esta reflexão ser conduzida por um assassino em série cujo objetivo na vida é, para além de não ser apanhado, tratar a morte como uma das Belas Artes, cada assassinato enquanto performance/instalação inovadora. Faz diferença o discurso interessante e articulado do protagonista ser, em simultâneo, o de um psicopata assassino que, no fundo, apenas se preocupa com a sua carreira (fama, mulheres), negligenciando muito do que o rodeia (incluindo relações, previsíveis, com uma aluna e a sua quase ex-mulher)?
Para além de eventualmente sublimar alguns eventos pessoais (como sucedeu em obras anteriores) é neste paradoxo que reside o interesse maior de “Eu, assassino”, e a inteligência da obra é patente, não só na construção de argumento, mas no desenho contrastado de Keko, que sugere haver uma dualidade que, na verdade, se esfuma. De facto, e caricaturando o que acontece frequentemente na Academia, o psicopata criativo, original e rebelde que protagoniza o livro acabará, não necessariamente castigado do modo “clássico”, mas menorizado por psicopatas copiadores cinzentos, que trabalham melhor dentro do sistema. A única solução é procurar uma outra abordagem inovadora, que lhe permita continuar a sua carreira dupla, académica e criminal, já que, em última análise, tornaram-se indissociáveis. Na verdade, troque-se a palavra “psicopata” por “especialista” e estaríamos em presença de um retrato reconhecível do meio académico. Desse ponto de vista, apesar de alguns desequilíbrios, “Eu, assassino” é uma notável obra em forma de tese, que perturba até pelo contexto inesperado em que integra os diversos clichés que assume.
Esta edição prova ainda que, apesar da dinâmica editorial corrente, há um nicho para pequenas editoras explorarem a muita qualidade presente em diversos mercados, e em relação aos quais a realidade portuguesa perde sempre. Depois de “Caravaggio” de Manara, a Arte de Autor volta a marcar pontos com esta excelente edição.

Eu, assassino. Argumento de Antonio Altarriba, desenhos de Keko. Arte de Autor. 136 pp., 20 Euros.


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