segunda-feira, 28 de novembro de 2016

UNIÕES



A ideia é simples na sua genialidade: como conciliar diferentes universos ficcionais partindo da premissa que as distintas personagens tivessem sido contemporâneas? Não seria lógico pensar que Dr. Jeckyl/Mr.Hyde de Stevenson, Mina Murray (de “Drácula”), Alan Quartermain (de “As Minas do Rei Salomão”), Capitão Nemo de Jules Verne, o sexualmente camaleónico Orlando de Virginia Woolf, ou o Homem Invisível de H.G. Wells pudessem ter formado um grupo de super-heróis “pré-históricos”, embebidos na geopolítica do seu tempo, e lutando contra o Professor Moriarty e Fu Manchu? Essa é a premissa por detrás de “A Liga dos Cavalheiros Extraordinários”, série escrita por Alan Moore e desenhada por Kevin O’Neil, de que saiu recentemente o terceiro volume, “Século” (Devir).

Após início na DC Comics este volume (2009-2012) é publicado por pequenas editoras (Top Shelf nos EUA, Knockabout no RU), com o controlo total dos autores; e, se a “Liga” já era uma série delirante, a dupla inglesa aproveita a liberdade para construir uma reflexão em torno da evolução da sociedade e da cultura popular, no meio da qual a história apocalíptica em si acaba quase por ser secundária. Desde logo há uma simplificação de personagens, apesar de Moore incluir várias referências mais ou menos obscuras, em “Século” conta sobretudo o triângulo amoroso Mina/Orlando/Alan (Orlando como “joker” sexual na relação a três), com a descendência do Capitão Nemo como elemento perturbador. O “truque” primário da imortalidade dos protagonistas (versão literal da imortalidade literária) faz com que seja possível combater a mesma ameaça em três diferentes tempos de uma Londres “alternativa” (qualquer semelhança com a realidade não é coincidência) que compõem as três partes do livro. Em 1910 ainda sob a sombra de Jack o Estripador, e citando fortemente “A Ópera dos Três Vinténs” de Brecht e Weill (com canções e tudo) e a desigualdade social. Em 1969 com o psicadelismo e a sedação de multidões culminando num “punk” estéril, e incluindo na trama a teoria do assassinato do membro fundador dos Rolling Stones Brian Jones (obviamente que com contornos inesperados). Finalmente, o “presente” (2009) marcado por conflitos constantes e artificiais numa sociedade miserável e domesticada, que, apesar de tudo, poderia ser muito pior, não fora a “Liga de Cavalheiros Extraordinários” (ironicamente liderada por Mina) combater a ameaça velada desde início, e agora materializada, o Anti-Cristo. Nada menos do que Harry Potter. O que vale é que Mary Poppins surge para ajudar na luta final. Sim, “Século” é, no fundo, um assomo febril de referências (a pedir edições anotadas, como outros trabalhos de Moore), com as quais os autores são muito claros a formular opiniões, e em que nada (mas mesmo nada, nada, nada) se adivinha deixado ao acaso, do texto aos pormenores gráficos e caras perdidas na multidão que o desenho anguloso e elegante de O’Neil claramente se diverte a representar. Seguir uma história de desconstrução social marcada pela evolução da cultura popular é interessante, mas a surpresa da integração de citações díspares (das quais 10-90% poderão passar ao lado de um qualquer leitor) é o que transforma “A Liga dos Cavalheiros Extraordinários” numa hipnótica e confusa maravilha.

Não tem sido meu hábito falar de traduções: não só retira ao mérito da edição em si, como a qualidade tem melhorado. No entanto, com várias gerações treinadas no inglês como primeira língua estrangeira, é um pouco estranho que se continuem a cometer erros infantis (“constipation” não é uma vulgar “constipação”, só para citar um), e o texto pareça oscilar em termos de estilo ou emperrar constantemente, mesmo quando se usam vários tradutores e outros tantos revisores (ou por causa disso). É possível que o problema esteja relacionado com uma coisa boa: o volume de obras editadas e os prazos apertados, mas é uma questão (comum à G.Floy e Levoir) que contrasta com a excelente qualidade gráfica.

A Liga dos Cavalheiros Extraordinários, volume III: Século. Argumento de Alan Moore, desenhos de Kevin O’Neil. Devir. 250 pp., 35 Euros.

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