domingo, 12 de fevereiro de 2017

SEXO


Usar o sexo enquanto tema nunca é linear. Até porque em banda desenhada há a possibilidade de o desenho poder atrapalhar, deixando poucas alternativas de registo que não o clínico ou o erótico-pornográfico, sobretudo o segundo. É o que tende a suceder com autores que privilegiam um realismo sensual, como os italianos Milo Manara ou Paolo Eleuteri Serpieri, em especial quando os argumentos não controlam bem esse fator, ou parecem meros veículos para o realçar. Um bom exemplo é “Druuna”, série de Serpieri retomada recentemente em Portugal pela Arte de Autor com “Anima”. Aqui o excelente desenho tende a esgotar-se em si mesmo, apesar de o facto de “Anima” ser um livro mudo (e descomplexado na sua simplicidade) lhe dar algum interesse formal. Mas mais raro do que introduzir elementos sensuais/sexuais numa obra, é falar abertamente sobre sexo, em vários dos seus múltiplos aspetos. É o que sucede na série “Criminosos do sexo”, uma bela iniciativa da Devir, com argumento do norte-americano Matt Fraction e desenhos do canadiano Chip Zdarsky.

Fundamental nesta obra é o trabalho de Fraction, extremamente hábil a cobrir diferentes tipos de questões relacionadas com o tema (prazer, aventura, amor, vergonha, ciúme, manipulação, mistério, repressão, culpa, preferências) utilizando uma estratégia que passa por misturar experiências concretas reconhecíveis, com doses de tragédia e humor que não deixam a história derrapar muito por causa do seu ponto de partida. Porque falta dizer que esta é uma série sobre sexo com matriz de super-heróis. Na verdade, ao escrever sobre “Criminosos do sexo” fica-se com a sensação clara que qualquer descrição não lhe vai fazer justiça, e pode afastar alguns leitores. Desde logo a premissa, que tenderá a parecer a de um mau filme erótico. Esta é uma série protagonizada por diferentes tipos de indivíduos, cada um banal à sua maneira, que têm como “superpoder” a capacidade de parar o tempo cada vez que têm um orgasmo. Durante curtos instantes podem deslocar-se numa realidade suspensa (a “calmaria”), mexer em objetos, roubar bancos, interagir com os seus concidadãos que não sabem estar paralisados. A história inicia-se quando os dois protagonistas se encontram, descobrindo uma capacidade partilhada que achavam única, e começam a estimular-se mutuamente para potenciar o seu uso, numa das muitas aproximações que Fraction faz às caraterísticas evolutivas de uma relação. Em paralelo trocam histórias de descoberta sexual desde a infância-adolescência, que não estariam deslocadas numa BD muito séria sobre o modo quase milagroso como a maioria das pessoas parece equilibrada apesar das suas experiências a este nível. Claro que, sendo um trabalho de Fraction (veja-se “Hawkeye”) a profundidade anda sempre de braço dado com o humor desbragado  “non-sense”, e rapidamente os protagonistas se vêm ameaçados por uma espécie de “polícia do orgasmo”, que procura evitar que o seu poder seja abusado, que “calmaria” rime com “anarquia”. Esta mudança constante de registos só é possível graças ao desenho de Chip Zdarsky, porque suficientemente realista e vibrante (particularmente no uso da cor) para gerir as situações humorísticas sem cair na caricatura, e as situações realistas e fantásticas sem deixar cair a credibilidade.
Com tudo para ser uma amálgama confusa de arrogância, superficialidade e, pior que tudo, mau gosto, “Criminosos do sexo” tem um pouco disso tudo, mas não exatamente como seria de esperar. E é uma das obras mais surpreendentes e estimulantes dos últimos tempos.


Criminosos do sexo, volume 1: Um truque estranho. Argumento de Matt Fraction, desenhos de Chip Zdarsky. Devir. 140 pp., 15 Euros.

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