sábado, 1 de julho de 2017

CÂNONES


A edição de banda desenhada tem vivido alguma pujança, marcada pelas constantes coleções com jornais, cuja regularidade aparentemente prova a existência de um mercado até há pouco insuspeito, e focado em diferentes tipos de estilos narrativos. Mas é preciso também (ou sobretudo) destacar trabalhos editoriais muito relevantes pela diferença que aportam. É o caso da Mmmmnnnrrrg/ChiliComCarne, e da sua aposta em autores como o finlandês Tommi Musturi, como na excelente edição de “Simplesmente Samuel”. Claro que se há coisa que esta editora procura não é, certamente, ser consensual; e muitos leitores abordarão o estilo caricatural/simbólico das coloridas BDs mudas de Musturi como uma perda de tempo, porque “não há história, não se passa nada”. E é pena.

Em “Simplesmente Samuel” de facto não existe bem um argumento, antes conceitos que definem os deambulares de uma estranha personagem desenhada de forma aparentemente inofensiva e infantil através de um universo feito de traços decididos e cores fortes, que contrastam com o surrealismo onírico. Mas as aparências iludem, e, de modo quase orgânico, para além de um tom de descoberta permanente, vão surgindo elementos estranhos, misteriosos, sexuais, escatológicos, violentos. Com o branco da personagem a assumir-se, não enquanto pureza ou inocência, mas como algo a ser contaminado pelas influências que encontra no caminho. A viagem de Samuel através das páginas transforma-se pois numa estranha meditação sem palavras, contada apenas em desenhos. Se os temas e soluções de Musturi evocam inapelavelmente o norte-americano Jim Woodring (n. 1952), e o seu “Frank” em particular, limitá-los a essa comparação é também injusto. No seu trabalho há ainda o recurso regular a elementos que evocam a história da banda desenhada e cinema de animação. Na verdade, a um certo ponto o branco de Samuel assume-se (via a presença de um sósia do cão Milu) como semelhante à inexpressividade de Tintin, corpo branco onde os leitores se podem projetar a si mesmos. Noutras situações a atividade construtora da personagem evoca Chris Ware.
Mas nos momentos mais interessantes de “Simplesmente Samuel” é mesmo a própria iconografia da BD que é questionada, como no “nascimento” da personagem, visto na perspetiva temporal inversa. Ou na forma como a relação espaço-tempo entre desenhos perde a lógica que faz parte das regras da BD, e onde se notam afinidades com o trabalho de Fred ou Marc-Antoine Mathieu. Ou ainda na plasticidade do cenário, que tanto pode submeter o protagonista, como submeter-se à sua vontade. Por último, e de modo ainda mais interessante, numa sequência que deveria ser ensurdecedora de acordo com os cânones da linguagem, mas na qual não se “vislumbra” um único ruído. Claro que se nota por vezes também um gosto de Musturi pela provocação, ou em desenhar cenários ou situações cuja justificação parece ser um estrondoso “porque sim”. Mas há inúmeras descobertas a fazer neste belo livro, onde se passa muita coisa. Só não se passa exatamente como noutras circunstâncias. 



Simplesmente Samuel. Conceitos e desenhos narrativos de Tommi Musturi. Mmmnnnrrrg. 160 pp., 20 Euros.




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