quinta-feira, 14 de setembro de 2017

CORTO


Nada mais apropriado do que uma ressurreição para uma revisitação, mais a mais quando a editora Arte de Autor assume a “herança” de uma linha que vem da Meribérica/ASA, e que é estranho chamar “clássica”, porque só o é para a nossa tradição de mercado (mesmo assim, já não tanto); e ainda menos designar “franco-belga”, já que a maioria das apostas com impacto até são de autores italianos. Como Manara e Serpieri. Ou Hugo Pratt (1927-1995).

Nota prévia: o meu filho (n. 2000) chama-se Hugo porque “Maltês” não é nome próprio, e “Corto” seria pior ainda... Mas é bom recordar que “A balada do mar salgado” (1967) é um relato de aventuras nos Mares do Sul com o Oceano Pacífico como maior figura, e apenas capas posteriores põem o marinheiro maltês em destaque. Corto foi-se sobrepondo a Caïn e Pandora Grovesnore, aos loucos Rasputine e “Monge”, aos nobres condenados Crânio e Slütter. Ficou Rasputine como contraponto para o futuro, Caïn e Pandora como destinos que poderiam ter sido, mas só no final nasce o Corto Maltese protagonista. O interesse hipnótico deste livro é o entrelaçar de temas e a profundidade das personagens com percursos complexos, nas quais é difícil apontar “bons” e “maus”, dando-se igual peso a ponto de vistas díspares (alemães e ingleses; indígenas e ocidentais). Há ação, viagens, aventura, mitologia, antropologia, geografia, política, geoestratégia, intrigas familiares. Com um fundo que inclui o início da guerra de 1914-18, onde manobras obscuras e fins justificarão meios (sacrificando Slütter); bem como o confronto entre colonialismo e independentismo (promovendo os adaptáveis Tarao e Sbrindolin, sacrificando o mais genuíno Crânio). 

Apesar de leituras do livro mencionarem a influência de Joseph Conrad, Jack London ou Robert Louis Stevenson, a inspiração para esta história terá sido “A Lagoa Azuldo irlandês Henry De Vere Stacpoole (1908), com Caïn e Pandora no lugar de Dicky e Emmeline Lestrange (uma versão em filme lançou Brooke Shields). Só que Caïn cita Rimbaud e Stevenson, e é impossível não ver na personagem “Monge” uma versão do Kurtz de Conrad. Pratt era exímio a provocar com o óbvio e a trabalhar referências menos reconhecidas (daí também a admiração de Umberto Eco).


É certo que nem todas as aventuras de Corto Maltese atingem o mesmo nível. “A balada” e “Fábula de Veneza” estão numa ponta, “Mu” na outra. E onde situar o relato no Alaska e Yukon “Sob o sol da meia noite” (2015), a primeira “ressurreição” levada a cabo pelos espanhóis Juan Díaz Canales, e Rubén Pellejero? Uma história razoável que Pratt podia ter imaginado? Ou um falhanço que tenta um registo mais prattiano do que Pratt? A segunda. E isto porque se Pellejero é até uma escolha lógica, dado o seu estilo ser influenciado por Pratt (ver “Dieter Lumpen”, com Jorge Zentner), a aproximação mimética falha precisamente pela proximidade, em momentos-chave o estilo foge para o registo mais redondo, habitual no autor. Por outro lado, os problemas de erudição à solta sem valor narrativo que Canales já tinha evidenciado por vezes em “Blacksad” são aqui (sem o magnífico desenho de Juanjo Guarnido) muito evidentes. “Sob o sol da meia noite” pisca o olho ao cânone (Rasputine, Pandora, London), mas inclui demasiadas coisas: revoluções e causas perdidas, histórias de amor, loucura, heroísmo, exploração (de nativos inuit, de mulheres). Que fluem de forma forçada porque não há tempo para trabalhar bem nenhuma delas, e não surgem personagens que não pareçam caricaturas, apesar dos nomes históricos, que vão de Virginia Prentiss (a ama negra de Jack London) e Matthew Henson (o explorador negro do Ártico que acompanhou Robert Peary), ao boxeur Frank Slavin, ao explorador e baleeiro George Comer e sua companheira inuit Shoofly (e Pameolik, que “junta” Slütter e Crânio); acabando no homem da indústria do petróleo (e guerra) Joe Boyle, que simboliza o substituir da aventura pelo empreendedorismo. Há cópias tão boas (ou melhores) que os originais. Não é o caso. Felizmente a Arte de Autor teve a feliz ideia de proporcionar ambos.

A balada do mar salgado. Argumento e desenhos de Hugo Pratt. Arte de Autor. 183 pp., 26,95 Euros.
Sob o sol da meia noite. Argumento de Juan Díaz Canales desenhos de Rubén Pellejero. Arte de Autor. 82 pp., 18,65 Euros.







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