segunda-feira, 27 de novembro de 2017

PIRITE


Aquando da publicação de “Miracleman”, com o material escrito para a personagem por Alan Moore nos anos 1980 referiu-se que, de relevante, faltavam as histórias de Neil Gaiman. E, prosseguindo o seu excelente trabalho, a G. Floy Studio apresenta agora “Miracleman: A idade do ouro”, que reúne argumentos de Gaiman magnificamente ilustrados, com estilos adaptados a cada história, por Mark Buckingham. Realizadas nos inícios da década de 90, às histórias que compõem este volume deveriam seguir-se os arcos narrativos “Silver Age” e “Dark Ages”; o primeiro ainda iniciado, o segundo esboçado. Para já é o que temos, e vale muito a pena conhecer.

Note-se, desde logo, que não faz sentido apreciar este volume sem ter lido as histórias de Moore, que estabelecem o contexto sobre o qual Gaiman constrói. Há até alguma reverência na abordagem, incluindo uma prosa a espaços rebuscada, que a tradução acentua. Mas, se após uma desconstrução brilhante do universo de super-heróis Moore parecia não saber muito bem o que construir sobre as suas ruínas (fá-lo-ia em “Watchmen”), Gaiman é inteligente nas escolhas. Para além de trabalhar as consequências lógicas de um mundo governado por um super-herói que, no fundo, funciona como Deus; o que Gaiman faz de notável é balizar as suas personagens para além do contexto fantástico em que se movimentam. “A idade do ouro” não é bem sobre Miracleman, mas sobre a sua influência em alguns dos seus súbditos “normais”. De que modo reagiria a sociedade à presença de um Deus “real”, interventivo e omnipresente, e dos seus filhos mais do que humanos? Que peregrinações e pedidos lhe fariam (e como responderia ele)? O que aconteceria a profissões geradas por conflito e guerra num mundo de harmonia? E a paz oferecida por Miracleman seria suportável para todos, ou haveria nostálgicos pelos “bons velhos tempos”? Embora se notem hesitações no criar de um todo a partir das várias histórias independentes (o juntar de todas as personagens na última história é revelador disso mesmo), se isto parece uma antecipação a alguns momentos de “Sandman”, a série marcante de Gaiman, é muito natural; histórias de pessoas normais postas perante circunstâncias extraordinárias (por vezes sem as compreender) são onde o autor mais brilha.

Claro que nem sempre a fórmula resulta em pleno. Adaptando um conto do próprio Gaiman “Como falar com raparigas em festas” (Bertrand Editora) conta com o desenho dos notáveis autores brasileiros Gabriel Bá e Fábio Moon (“Daytripper”). As espectativas eram elevadas, e talvez por isso se sinta alguma frustração pela ligeireza do projeto. O desenho é dinâmico e a ideia excelente, mais uma vez baseada numa realidade banal. Um jovem adolescente (no qual se reflete o próprio Gaiman) sente dificuldades em falar com as deslumbrantes raparigas presentes numa festa, porque parecem ser de outro planeta. E se fossem mesmo? Ou encarnações de lendas, de formas poéticas, de mitos? Mas a BD em si nunca funciona tão bem como a ideia, sobretudo porque não se decide sobre qual a lógica a apresentar aos leitores, quanto é suposto que saibam, quanto é suposto ser revelado. Na verdade, como em “Miracleman”, talvez tivesse sido interessante incluir um posfácio, ou notas de leitura.

Em resumo: se em “Miracleman” Gaiman ainda não era o grande argumentista de “Sandman”, em “Como falar com raparigas em festas” já não é. Mas o que escreve vale, em ambos os casos, muito mais do que a maioria, e os desenhos dos seus colaboradores nestes projetos são excelentes. Sem ser bem ouro, brilha, provoca, e encanta na mesma.

Miracleman: A idade do ouro. Argumento de Neil Gaiman, desenhos de Mark Buckingham (cores de D’Israeli). G. Floy Studio. 192 pp., 16 €.
Como falar com raparigas em festas. Argumento de Neil Gaiman, desenhos de Fábio Moon e Gabriel Bá. Bertrand Editora. 64 pp., 14,40 €.

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